Educare.pt (E): Tem observado o funcionamento de creches na Dinamarca e na Inglaterra, a nossa realidade está assim tão distante?
Gabriela Portugal (GP): Sim. Mas importa considerar que há muitas maneiras de trabalhar bem. As culturas dinamarquesa ou inglesa são, naturalmente, diferentes da nossa. Dentro da nossa forma de trabalhar há espaço para melhorar a partir das nossas atuais circunstâncias. Esse é o desafio. A forma de organização do espaço na Dinamarca traduz uma conceção de criança mais competente e autónoma.
Nós somos mais superprotetores e isso envolve uma atitude mais limitadora ou cerceadora da ação e movimentação da criança. Temos muito medo que aconteça algum mal às nossas crianças, o que é indicativo de cuidado, de atenção e de afeto. Só que tudo isto em dose avantajada, exagerada, pode ser contraproducente para o desenvolvimento da criança. Numa creche francesa que eu conheci, já em 2000, as crianças circulavam à vontade por todo o sítio e mais algum. Entre nós isto será muito difícil, porque as crianças têm que estar sempre sob o olhar do adulto. Há uma grande necessidade de controlo!
E: A visão mais capacitadora das crianças ainda está assim tão afastada das nossas mentes?
GP: Temos uma abordagem muito uniformizadora e diretiva em relação às crianças. Se o adulto não estiver presente, a controlar, assume-se que a sala vira o caos. Educar para a autonomia é algo que se faz ainda de forma muito limitada... porque na nossa conceção de criança esta é "incapaz".
O adulto atua como sendo a pessoa que sabe o que é mais importante para a criança. O que é que ela necessita. E, muitas vezes, não tem em consideração o vivido da própria criança. Atua como se ele fosse capaz de "programar" o desenvolvimento e aprendizagens das crianças. Apesar de uma retórica em que diz que tem em consideração as necessidades e interesses das crianças, que a observação da criança é um elemento sempre presente na sua prática. De facto, isso acontece, frequentemente, de forma incipiente. As reais potencialidades ou capacidades das crianças não são exploradas e atualizadas.
E: Mostrou uma imagem de criança numa creche nórdica a cortar a fruta. Uma educadora dizia que em Portugal era impensável pôr uma criança a lidar com facas...
GP: Nos países nórdicos, por exemplo, é comum as crianças utilizarem facas. Na questão da circulação num espaço arranjam-se estratégias orientadoras e que facilitam a autonomia e independência da criança na sua movimentação. Estou a lembrar-me de uma instituição em que havia portas pintadas de amarelo e portas pintadas de azul - as crianças sabiam que pelas portas amarelas elas podem entrar e sair à vontade mas nas portas azuis não entram. E havia dezenas de portas amarelas e apenas algumas azuis! As regras estão interiorizadas e os adultos não andam atrás a ver se as crianças cumprem ou não.
Ainda no que respeita à confiança na criança, na Dinamarca há jardins de infância que não têm uma vedação e as crianças estão a maior parte do tempo na rua. Confia-se nas crianças. Aqui seria impensável.
E: Podemos concluir que as nossas crianças podem ser mais autónomas se os adultos confiarem mais nas suas competências?
GP: As nossas crianças são pouco autónomas porque não as educamos para a autonomia. A educação para a autonomia tem que ser feita de forma gradual. Assegurando que o adulto se sinta bem neste processo de alargamento da livre iniciativa e autonomia da criança. Porque o adulto não pode estar num estado de ansiedade permanente (o contexto também tem de ser bom para o adulto).
Na Dinamarca observei crianças de 2 anos no momento da refeição. Elas vão buscar o prato, servem-se sozinhas, põem água no seu copo, comem à vontade, despejam os restos para um recipiente, colocam a louça suja no local próprio, depois saem e, sem nenhum adulto atrás, vão para o jardim. Sozinhas. Isto é estranho para nós. Aí as crianças brincam com paus, terra, água, trepam às árvores, saltam de estruturas altas e não há um adulto que mostre qualquer sinal de ansiedade!... Tudo isto é encarado com naturalidade e as crianças estão habituadas a esta forma de estar.
Nas chamadas "forest school", o jardim de infância ou a escola na floresta, onde não há vedações, vi crianças pequeninas que iam andando, andando, sozinhas, até chegarem àquilo que chamavam de "waiting tree". Era uma árvore referência - a partir daquela árvore elas sabiam que não podiam ir mais sozinhas. Chegadas ali, elas não avançavam mais. Mas esta árvore ainda ficava a uma distância razoável da casa onde se encontrava a educadora! Significa que as regras estão interiorizadas, não tem de haver ali o adulto a chamar a atenção ou um muro a limitar a movimentação da criança.
E: Mas para essas regras estarem interiorizadas é preciso quem as faça interiorizar. Qual é o perfil do educador de qualidade?
GP: Tem de ser alguém que a par de sensibilidade, é estimulante e capaz de dar espaço à criança promovendo a sua autonomia. Muitas vezes, quando se pensa em autonomia, pensa-se numa autonomia funcional - comer sozinha, ir à casa de banho sozinha, esse tipo de coisas. Mas há um outro tipo de autonomia, que é tomar decisões, ter iniciativas, ter objetivos e auto organizar-se para os atingir. Educar para a autonomia significa inovar em educação.
E: Em que patamar estamos depois de Bolonha ao nível da formação inicial dos educadores de infância?
GP: Ainda estamos em balanço, porque o perfil de formação destes profissionais mudou muito com Bolonha. Antes tinham uma licenciatura em Educação de Infância, de quatro anos. Neste momento a qualificação para serem educadores é reconhecida a nível de mestrado. [Os alunos] fazem uma licenciatura em educação básica que lhes confere um conjunto de requisitos e de domínio de áreas de conteúdo consideradas estruturantes (matemática, língua portuguesa, estudo do meio, expressões) e podem candidatar-se a um mestrado em educação pré-escolar ou a um mestrado em educação pré-escolar e ensino do 1.º ciclo do ensino básico.
A licenciatura em educação básica não profissionaliza para a docência. Dá-lhes uma visão generalista sobre questões de educação e sobre as áreas de conteúdos referidas. A partir daí podem enveredar por um percurso profissionalizante direcionado para a educação pré-escolar, 1.º ou 2.º ciclo.
Intervir educativamente
E: Intervir educativamente em creches pressupõe o quê?
GP: Pressupõe saber o que se está a fazer e, sobretudo, porque se está a fazer. Perceber o que é que faz sentido para uma criança entre os 0 e os 3 anos de idade, do ponto de vista do seu bem-estar, desenvolvimento e aprendizagens. O educador não pode deixar de compreender, respeitar e atender às necessidades e particularidades de todas as crianças e de cada uma em particular.
E: As políticas educativas estão a ir ao encontro da crescente atenção dada às questões da infância?
GP: Globalmente temos uma boa legislação no que respeita à educação de infância. Mas num momento de grandes restrições orçamentais, em que as famílias lutam com vencimentos exíguos e em que há dificuldades por parte dos próprios ministérios e das instituições, torna-se difícil atender a todos os desafios que a educação de infância levanta...
E: Está a referir-se ao despacho que aumentou o número de crianças e diminui as auxiliares?
GP: O aumento do número de crianças por sala, em parte, terá a ver com a sustentabilidade das instituições. Mas não é por aí que isso se vai conseguir. Até porque as instituições só podem aumentar o número de crianças se dispuserem de uma área suficiente. No entanto, a existência de mais crianças num mesmo espaço vai contra aquilo que a investigação indica relativamente ao ratio adulto-criança.
Uma possibilidade de se contornar as dificuldades do ratio poderá passar pela reconfiguração da forma de organização tradicional por salas/territórios. Se as crianças não estiverem adstritas a uma sala, com o seu respetivo educador, mas conhecerem o seu adulto de referência (que cuida, muda a fralda, dá de comer, põe a dormir, etc.) e circularem pela instituição, poderia encontrar-se uma forma interessante de repensar o serviço educativo da creche.
E: Fazer mudanças ao nível da organização do espaço...
GP: Sim. Em Portugal, nas creches e jardins de infância as salas são mais ou menos idênticas: todas têm uma casinha das bonecas, um cantinho de livros, de jogos, brinquedos, etc. Mas poderá haver uma sala só para construções, outra só para brincar com água e areia, outra só para livros e alguns jogos, etc. Há um adulto que vai "rodando" e que poderá ficar responsável pela animação de uma determinada sala durante uma semana. E as crianças circulam livremente e vão para o espaço que entendem.
E: De que forma a qualidade da creche pode influenciar a relação entre educadores e crianças?
GP: A qualidade da relação que se estabelece com as crianças é a principal dimensão de qualidade na creche. Uma criança que recebe atenção - que é escutada, que obtém respostas boas dentro de um tempo adequado - desenvolve o sentido de que "eu sou importante, eu sou gostada, as pessoas olham para mim, escutam-me". Este sentimento está na base do desenvolvimento de uma boa autoestima e autoconfiança.
Claro que uma creche só é de qualidade se os adultos que nela trabalham se sentirem bem e realizados no trabalho que aí desenvolvem. Só adultos que estão bem consigo próprios poderão estabelecer boas relações com as crianças.
E: É comum falar-se em stresse ligado a crianças nestas idades. Como é que evitamos o seu efeito nas nossas creches?
GP: O stresse em creche tem muito a ver com a agitação, o barulho, a sobre estimulação, demasiados brinquedos e com o pouco espaço para a sua expressão individual. Como evitar? Cada creche, cada equipa de profissionais, poderá encontrar as suas próprias respostas para evitar ou superar estas situações. Não é possível mudar tudo ao mesmo tempo mas, pouco a pouco, pode chegar-se a um patamar de qualidade mais elevado.
E: O que é o SAC?
GP: É um instrumento para avaliação em educação pré-escolar, resultante do projeto "Avaliação em educação pré-escolar - Sistema de Acompanhamento das Crianças", financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Procurou-se dotar os educadores de conhecimentos sobre procedimentos de observação, registo e avaliação, quer dos processos, quer dos efeitos presentes no contexto educacional da sua responsabilidade. O uso correto do SAC permite que os educadores de infância tenham uma visão clara sobre o funcionamento do grupo, atendendo aos níveis de implicação e de bem-estar, e sobre os aspetos que requerem intervenções específicas, considerando a oferta educacional, o clima de grupo, o espaço para iniciativa, a organização do contexto e o estilo dos adultos.
O SAC permite ainda a identificação das crianças que necessitam de atenção diferenciada e a consequente planificação de um conjunto de iniciativas que levem à resolução de problemas e à maximização da qualidade educativa, tanto para o grupo como para cada criança. Em suma, fundamenta o desenvolvimento do currículo pré-escolar e atende aos resultados da ação educativa (desenvolvimento de competências).
Uma vez desenvolvido, o ciclo contínuo de observação-avaliação e ação inerente ao SAC, as capacidades de empatia e de adoção da perspetiva da criança são reforçadas, assim como a capacidade de refletir e questionar a existência de certos hábitos e rotinas. Isso permite que o educador de infância possa sentir-se inspirado e orientado para experimentar diferentes abordagens e inovar. Se os níveis de bem-estar e implicação aumentam, os educadores sabem que estão no caminho certo, a promover e a desenvolver a autoconfiança das crianças, alimentando a sua curiosidade, motivação para a exploração e desenvolvimento de competências.
O uso do SAC sustenta o desenvolvimento profissional ao nível da conceção e organização do ambiente educacional; observação, planificação e avaliação; relacionamentos e intervenção educacional, desenvolvimento curricular; trabalho em equipa, reflexão e capacidades de investigação. Todas estas dimensões estão integradas no Decreto-Lei n.º 241/2001, que define o perfil específico de desempenho do educador de infância.